Um interessante exercício, para quem gosta de ler demonstrações financeiras, é examinar o montante de contingências tributárias nelas contempladas, percentualmente, em relação ao seu patrimônio líquido. Embora o seu fruto não indique qualquer índice com finalidade específica, assim definido por metodologia contábil ou econômica, certamente que os números apurados assustarão e sobre isso vale a pena refletir.
O registro dos tributos nas demonstrações financeiras
O tributo exigido das entidades deve ser objeto de registro no balanço, quer sob a forma de tributos correntes, aqueles que correspondem a obrigações legais, que não se discutem apenas se liquidam, quer por conta de contingências tributárias que pressupõem contenda, administrativa ou judicial, por decorrerem de lançamentos por omissão no registro do encargo ou por equívocos de cálculo ou, ainda, por se originarem de divergência na interpretação e na aplicação da lei, entre a entidade e o Fisco. A primeira hipótese, obrigação legal, não envolve discussão visto que o conteúdo da norma de incidência está sendo observado, em sua integridade, para fins de registro em balanço. A segunda hipótese, contingências, é a que nos interessa neste pequeno artigo, pois sua contabilização observa critérios especiais e, a depender do caso, sequer é objeto de registro em balanço ou de divulgação em nota explicativa.
O registro contábil desse passivo contingente, pois não se sabe se o tributo pode ser exigido, obedece a critérios técnicos da contabilidade que se louva, tradicionalmente, na opinião dos advogados especialistas. Os passos dessa avaliação, sejam temas sob discussão, ou não, consistem em atribuir a qualificação das perdas com base na jurisprudência dos tribunais superiores, a saber: perda remota, de difícil consecução, perda provável, ainda não definida e perda provável, quando o panorama é absolutamente desfavorável ao contribuinte.
A Comissão de Valores Mobiliários adotou o Pronunciamento do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) nº 25, que trata de passivos contingentes, determinando que não sejam contabilizados (item 27), mas apenas divulgados (item 28) aqueles passivos em que a saída de recursos (a título de pagamento) seja remota. Por fim admite que passivos contingentes podem desenvolver-se de maneira não inicialmente esperada, razão pela qual devem ser periodicamente avaliados (item 30). Se a classificação do passivo contingente migrar de perda remota para provável, deve ser reconhecida uma provisão.
Um exame detido dos balanços publicados pelas companhias abertas demonstrará que o montante de contingências, nos termos acima informados, atinge percentuais assustadores quando cotejados com os patrimônios líquidos dessas sociedades, em alguns casos, quase 100%. Esse fenômeno não é novo e já vem sendo por nós estudado há mais de 15 anos. O que é novo, seguramente, é o seu crescimento, pois há dez anos atrás esse percentual ficava entre 40 e 50%.
Por que razão o patrimônio líquido é critério importante no exame das contingências?
O CPC, 00(R2), em seu item 4.63, define o patrimônio líquido como a participação residual nos ativos da entidade após a dedução de todos os seus passivos. Em outras palavras, o patrimônio líquido, que pertence aos sócios, resulta da diferença entre os ativos e os passivos das entidades, portanto, os ativos se prestam a liquidar os passivos. A nosso ver, quando se observa que grande parte das empresas de capital aberto têm contingências em montantes próximos ou equivalentes ao patrimônio líquido que divulgam nos balanços, se está a afirmar que esse patrimônio não se prestaria a liquidar outras dívidas caso, em um raciocínio extremo e por absurdo, essas contingências se confirmem, total ou parcialmente. Com isso é possível que a continuidade de muitas entidades fique comprometida, no futuro.
Diante disso, nascem questões que merecem reflexão: (1) o quanto as contingências das sociedades afetam o apetite do mercado acionário; (2) o quanto as contingências afetam o valor das ações e são computadas nas negociações desses instrumentos financeiros; (3) o quanto esse cenário desestimula os investidores estrangeiros. Não temos respostas a todas essas indagações, mas há estudos que concluem, por exemplo, que em momentos de contração econômica os investidores optam por participar de empresas com menor valor de passivos contingentes [1]. No que tange aos investidores estrangeiros, é certo que eles sempre demonstram preocupação com nosso ambiente tributário.
Esses elementos, somados, nos levam a concluir que há algo de errado no sistema tributário vigente, nas leis e sua regulamentação, nas auditorias do Fisco, nos julgamentos proferidos pelos tribunais que, a despeito de imparciais por dever, talvez tenham dificuldade com a complexidade do sistema normativo. Estamos, como se apresenta a situação, não só sob o império da dívida tributária, mas também da dúvida e, portanto, da insegurança e nada disso é bom para a sociedade.
De outro lado, avizinha-se a implementação da reforma tributária voltada aos tributos sobre o consumo, extremamente complexa em sua lei matriz (Emenda Constitucional nº 132/23), e muito mais em seu projeto de regulamentação (PLP nº 68/24), dadas as dúvidas que tem gerado, muito além do desejável, isso em temas que se pretende sejam corriqueiros nesse tipo de tributo, como o creditamento pelo vendedor do valor da utilidade transferida. Esses fatos deixam, desde já, a percepção de que o cenário será, no mínimo, igual ao que hoje se apresenta.
Onde encontrar a contrapartida pública das contingências dos contribuintes?
Interessante observar que a transparência contábil exigida dos contribuintes não é a mesma exigida do poder público. De acordo com a Nota Explicativa nº 21, às Demonstrações Contábeis Consolidadas da União, Balanço Geral de 31/12/2023 [2], a contabilização da receita orçamentária, decorrente da arrecadação tributária, pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), tem seu registro como receita orçamentária no momento da arrecadação (artigo 35 da Lei nº 4.320/64) e decorre do enfoque dessa lei que, por ser orçamentária, evita que a execução das despesas ultrapasse a arrecadação efetiva. Logo, pertencem ao exercício financeiro as receitas nele arrecadadas, o que representa a adoção do regime de caixa para o registro das receitas públicas.
Ou seja, o aumento do valor das contingências, nas sociedades, embora possa ser dimensionado [3], não encontra registro de ativo no balanço público, até mesmo por um princípio contábil que restringe o registro de ativos contingentes, por não serem ativos, ou recursos econômicos presentes controlados pela entidade como resultado de eventos passados.
A busca pela redução de contingências
Credita-se o aumento das contingências tributárias, muitas vezes, à falta de apetite do contribuinte para pagar tributos. A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) órgão da União Europeia, desenvolve pesquisas acerca da motivação dos contribuintes para pagar tributos, pois entende que ao aumentar esse conhecimento talvez seja possível modificar os sistemas tributários, tornando-os mais amigáveis, assim levando os cidadãos a atenderem seus encargos, voluntariamente. As motivações para tal omissão, quando justificadas, variam, podendo ser legítimas como complexidades do sistema, excesso de obrigações acessórias, ou decorrentes de meras percepções como malversação de recursos, injustiça do tributo e distribuição equivocada de renda, mas todas usadas como argumento para não pagar o tributo.
A busca pela redução das contingências tributárias também está vinculada à redução do contencioso tributário. Nos últimos anos diversos órgãos governamentais vêm tentando reduzir esse contencioso com medidas que envolvem desde programas de refinanciamento de débitos, até transações individuais ou coletivas com o objetivo de incentivar a arrecadação, inclusive com a redução de multas e de juros em montantes bastante atraentes para os contribuintes. O Conselho Nacional de Justiça também se aliou a essa batalha, uma vez que o custo dessas disputas, para o país, é de difícil mensuração.
Visando solucionar conflitos ainda na raiz, a Advocacia Geral da União (AGU) criou a Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios, para identificar situações de incerteza jurídica e propor soluções que incentivem os investimentos no país (Portaria Normativa AGU nº 110/23), formada por órgãos governamentais e por entidades representativas de segmentos empresariais e sociedade civil. Objetiva-se promover um diálogo técnico sobre temas jurídicos relevantes para o ambiente de negócios brasileiro, bem como prevenir e reduzir a litigiosidade por meio do fomento à adoção de soluções autocompositivas, facilitando a articulação entre órgãos e entidades da administração pública federal e os setores econômicos
O direito ao planejamento dos negócios e as alterações legislativas
Grande parte das contingências advém de alterações inopinadas na lei, afetando a segurança de que deve desfrutar o contribuinte em seus negócios, como é o caso recente da revogação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), Lei nº 14.148/21, que ensejou uma corrida ao Judiciário para preservar direitos daqueles que se sentiam prejudicados e da revogação da desoneração de folha que também gerou muitos debates e um contencioso judicial que chegou ao Supremo Tribunal Federal, hoje resolvido com a edição da Lei nº 14.973/24. Além disso alteraram-se critérios consolidados há anos de dedução das subvenções para investimento, no cálculo do Imposto sobre a Renda e das contribuições sociais, dentre outros, levando a uma corrida aos tribunais.
Fonte: Consultor Jurídico (Conjur)